segunda-feira, 2 de abril de 2012

Senhor do Mundo - Livro 2, Cap.1 - O Encontro


Livro 2- O ENCONTRO



CAPÍTULO 1 

PARTE 1


Oliver Brand estava sentado à sua escrivaninha na noite do dia seguinte, lendo a notícia principal da edição vespertina do Novo Povo.

* * * * *

"Tivemos tempo," lia ele, "para nos recuperarmos da euforia da noite passada. Antes de entrar em profecias, será bom relembrar os fatos. Até ontem à noite, nossa ansiedade com relação à crise oriental persistia; e quando soaram as 21 horas, não havia mais que quarenta pessoas em Londres—os delegados ingleses, por assim dizer—que sabiam positivamente que o perigo tinha acabado.
Entre aquele momento e meia hora depois, o Governo tomou algumas medidas discretas: um seleto número de pessoas fora informado; a polícia fora chamada, com meia dúzia de regimentos, para preservar a ordem; o Palácio de Paul fora liberado; as ferrovias foram avisadas; e no momento certo, o anúncio fora feito através de painéis elétricos em todos os cantos de Londres, assim como em todas as maiores cidades do interior. Não temos espaço aqui para descrever todos os procedimentos perfeitos com que as autoridades públicas fizeram seu trabalho; é suficiente dizer que não mais que setenta fatalidades ocorreram em toda a Londres; nem devemos criticar a ação do Governo, em escolher este modo de fazer o anúncio.   

"Pelas 22 horas, o Palácio de Paul estava lotado por todos os cantos, a ala do Coro reservada para os membros do Parlamento e os funcionários públicos, as galerias da cúpula estavam cheias das senhoras, e o público foi liberado para o resto do piso. A polícia dos volors também nos informou que, por cerca de 1,6 km em todas as direções ao redor do centro, todas as ruas estavam lotadas de pedestres, e duas horas depois, como todos sabemos, praticamente todas as ruas principais de Londres estavam na mesma condição.
“Foi uma excelente escolha terem escolhido o Sr. Oliver Brand como primeiro orador. Seu braço ainda estava com ataduras; e o apelo da sua figura, assim como suas palavras apaixonadas deram a primeira nota da noite. Um relato das suas palavras pode ser encontrado  em outra coluna. Nas suas vezes, o Primeiro Ministro, Sr. Snowford, o Primeiro Ministro do Almirantado, o secretário dos Assuntos do Oriente, e o Lord Pemberton, todos falaram algumas palavras, corroborando as últimas notícias. Faltando quinze para as 11, o barulho do público do lado de fora, anunciava a chegada dos delegados americanos de Paris, e, um a um, estes subiram à plataforma pelos portas da ala do Coro. Cada um falou na sua vez. Era impossível apreciar as palavras faladas naquele momento; mas talvez não seja parcial dizer que Mr. Markham nos disse explicitamente que o sucesso dos esforços americanos foi inteiramente devido ao Sr. Julian Felsenburgh. Como ainda Felsenburgh não havia chegado;  mas em resposta a um grande apelo, Sr, Markham anunciou que esse cavalheiro estaria entre eles em alguns minutos. Ele, então, começou a descrever, tanto quanto possível resumidamente, os métodos pelos quais o Sr. Felsenburgh havia conseguido, no que seria a  missão mais surpreendente da história. Parecia, pelas suas palavras, que Sr. Felsenburgh (cuja biografia, até o quanto se sabe, nós fornecemos em outra coluna) é provavelmente o  maior orador que o mundo já conheceu—nós estamos usando estas palavras deliberadamente. Todas as línguas parecem a mesma para ele; ele fez discursos durante os oito meses pelo tempo que durou a Convenção do Oriente, em nada menos que em quinze idiomas. Do seu modo de discursar, temos algumas observações a fazer. Ele mostrou também, o Sr. Markham nos disse, um conhecimento muito surpreendente, não apenas da natureza humana, mas em todos os aspectos pelos quais o divino se manifesta. Ele parece familiar com a história, os preconceitos, os medos, as esperanças e expectativas de todas as inúmeras seitas e castas do Oriente, com quem ele teve oportunidade de falar. De fato, como o Sr. Markham disse, ele é provavelmente o primeiro produto perfeito da nova criação cosmopolita que o mundo tem criado em sua história. Em vários locais, tais como Damasco, Irkutsk (Sibéria), Constaninopla, Calcutá, Benares (Índia), Nanking (China), entre outras—ele foi saudado como o Messias por um turba maometana. Finalmente, na América, de onde sua extraordinária figura surgiu, todos falam bem dele. Ele não é culpado de nenhum crime—não há nenhum que o condene por pecado—esses crimes da Imprensa Marrom, de corrupção, intimidação política e negociatas, que tanto manchou o passado de todos os velhos políticos que fizeram, deste continente irmão, o que ele é hoje. O Sr. Felsenburgh nem ao menos formou um partido. Ele venceu sozinho e não pelos seus subordinados. Aqueles que estavam presentes no Palácio de Paul
nessa ocasião irá entender quando dissermos que o efeito destas palavras foi indescritível.
"Quando Sr. Markham se sentou, houve silêncio; depois, a fim de aquietar a crescente agitação, o organista tocou os primeiros acordes do Hino Maçônico; as vozes se elevaram, e não somente todo o interior acompanhou, como também do lado de fora, as pessoas responderam, e toda a cidade de Londres, por alguns momentos, tornou-se mesmo um templo do Senhor.
"Agora realmente, chegamos à parte mais difícil de nossa tarefa, e é melhor confessar de uma vez que qualquer coisa que relembre descrição jornalística, deve ser colocada de lado resolutamente. As maiores coisas são melhores descritas em palavras simples.
"Perto do final do quarto verso do hino, uma figura de  terno escuro simples foi observada, subindo os degraus da plataforma. Por um momento, isto não atraiu atenção, mas quando foi vista melhor, um súbito movimento rompeu por entre os delegados, a cantoria começou a claudicar; e cessou por completo, quando a figura, após uma leve inclinação para esquerda e direita, subiu os últimos degraus em direção à tribuna. Aí ocorreu um curioso acidente. O organista , distraído, não pareceu entender e continuou a tocar, mas uma reclamação da multidão o fez cessar. Contudo, não houve aplausos. Na verdade, um profundo silêncio dominou a todos; algum estranho magnetismo ocorreu até com que estava lá fora prédio, pois quando o Sr. Felsenburgh disse suas primeiras palavras, houve uma grande silêncio. Deixamos a explicação deste fenômeno para os experts em psicologia.

"Sobre suas palavras ditas, não temos nada a pronunciar. Até onde sabemos, nenhum repórter fez anotações do momento; mas o discurso, dito em esperanto, foi muito simples e curto. Consistiu de uma breve comunicação sobre o fato da Irmandade Universal, congratulações para todos aqueles que ainda estavam vivos para testemunhar a consumação desta história; e, ao final, um ato de louvor ao Espírito do Mundo, cuja encarnação agora estava realizada.
“Podemos dizer muito, mas nada quanto à impressão daquela personalidade que esteve lá. O homem parecia ter quase trinta e três anos de idade, barbeado, ereto, com cabelos brancos, sobrancelhas e olhos escuros; ele permanecia imóvel , apenas com as mãos no suporte da tribuna e, qualquer gesto que fazia , tirava um suspiro da multidão. Falava lentamente, distintamente e com a voz clara e depois pausava.”
“Não havia resposta, como se todos estivessem prendido a respiração e de novo aquele silêncio de onde só se podia ouvir as batidas do coração.
Muitos choravam em silêncio, lábios de milhares mexiam sem ecoar uma palavra, e todos os rostos estavam virados para aquela figura, como se a esperança de todas as almas estivessem ali centralizada. Assim, poderíamos comparar que, séculos atrás, muitos estava virados para uma outra figura conhecida na história, como JESUS DE NAZARÉ.

"O Sr.FELSENBURGH permaneceu por mais um momento e depois desceu pelas escadas da plataforma e desapareceu.

"Do que aconteceu do lado de fora, nós recebemos o relato de uma testemunha ocular. O volor branco, tão bem conhecido agora por todos que estavam em Londres naquela noite, tinha ficado estacionário do lado de fora da porta sul da passagem da ala do Coral, colocado a cerca de seis metros do chão. Gradualmente, ele se tornou conhecido pelo público, naqueles minutos, por onde ele havia chegado, e ante a reaparição de Felsenburgh, aconteceu aquele mesmo murmúrio, seguido de silêncio em toda a extensão do jardim do Palácio de Paul. O volor desceu um pouco mais; o mestre subiu a bordo, e uma vez mais, a aeronave se elevou. Pensaram que haveria outro discurso, mas nada mais era necessário; e pausando por um momento, o volor começou a fazer um desfile maravilhoso do qual Londres jamais esquecerá. Por quatro vezes naquela noite, o Sr. Felsenburgh circulou a enorme metrópole, boquiaberta, enquanto o silêncio acompanhava sua passagem. Duas horas após o nascer do sol, a nave branca elevou-se por Hampstead  e desapareceu pelo Norte; e desde então, ele, a quem devemos chamar, na verdade, de o Salvador do Mundo, não foi mais visto.
“E agora o que falta ser dito?
“Comentar é inútil. É suficiente dizer em uma frase curta que uma nova era começou, para a qual os profetas e reis, e os sofredores, os moribundos, todos que trabalham e carregam fardos pesados, têm esperado em vão. Não somente a rivalidade intercontinental acabou, como também as rusgas internas. Sobre ele, que tem sido o emblema deste novo tempo, não temos nada a dizer. Só o tempo poderá mostrar o que ainda resta para ele fazer.

“Mas o que tem sido feito é o seguinte. O perigo oriental foi dissipado para sempre. Está claro agora, desde os bárbaros fanáticos até as nações civilizadas, que o reino da Guerra acabou. ‘Não uma espada, mais a paz,’ disse Cristo; e amargamente verdadeiro estas palavras provaram ser. ‘Não uma espada, mas a paz’, é a resposta articulada afinal, daqueles que tem renunciado às solicitações de Cristo ou jamais a aceitaram. O princípio do amor e união fracamente aceito no Ocidente durante o último século, tem sido aceito pelo Oriente também. Não haverá mais apelo às armas, mas à justiça; não mais chorar ante um Deus que se esconde, mas para o Homem que aprendeu sua própria Divindade. O sobrenatural está morto; ou melhor, sabemos agora que nunca esteve vivo. O que resta é trabalhar esta nova lição, trazer toda a ação, palavra e pensamento para o amparo do Amor e Justiça; e isto será, sem dúvida, uma tarefa para anos. Todos os códigos devem ser revertidos; toda barreira derrubada; partido deve se unir com partido, país com país, e continente com continente. Não há mais o medo do medo, o receio do amanhã. O homem já se lamentou muito na luta desde seu nascimento; seu sangue tem sido derramado com o água por sua própria insensatez; mas finalmente ele entende a si próprio e está em paz.
“Deixe-se ver que finalmente a Inglaterra não está atrás das nações nesta obra de reforma; não vamos deixar que um isolamento nacional, orgulho racial, ou extrema riqueza faça com que se cruzem os braços ante este enorme trabalho. A responsabilidade é incalculável, mas a vitória é certa. Vamos seguir com calma, humildes diante do conhecimento de nossos crimes do passado, confiantes na esperança de nossas realizações no futuro, rumo àquela recompensa que está próxima finalmente—a recompensa oculta por tanto tempo pelo egoísmo dos homens, o manto de escuridão da igreja, e a rivalidade entre as línguas—a recompensa prometida por um que não sabia o que dizia e negava o que afirmava—Abençoado sejam os mansos, os pacificadores, os misericordiosos, pois eles herdarão a terra, e serão chamados de filhos de Deus, e terão misericórida.”

* * * * *

Oliver, com os lábios brancos, e sua esposa de joelhos ao seu lado, virou a página e leu mais um parágrafo curto, identificado como o das últimas notícias.

"Está certo que o Governo está mantendo contato com o Sr.
Felsenburgh."



II

"Ah! Isso é jornalês," disse Oliver, afinal, encostando na cadeira. " Coisa barata! "

Mabel levantou-se, andou em direção ao batente da janela e sentou-se. Seus lábios abriram algumas vezes, mas ela não disse nada.

"Meu bem," disse o homem, "você não tem nada a dizer?"

Ela olhou para ele trêmula por um momento.

"Diga!" ela disse. "Como você disse, de que adianta palavras?"

"Diga-me de novo," disse Oliver. "Como sei que isso não é um sonho?"

"Um sonho" ela disse. "Houve alguma vez um sonho como esse?"

De novo ela se levantou inquieta, atravessou a sala e ajoelhou-se ao seu marido, pegando suas mãos.

"Meu bem," disse ela, "Eu te digo que não é um sonho. É uma realidade finalmente. Eu estava lá também--não se lembra? Você esperou por mim, quando tudo estava terminado—quando ele foi embora—nós O vimos juntos, você e eu. Nos O ouvimos—você na plataforma e eu na galeria. Nós O vimos de novo passar pelo dique, quando estávamos na multidão. Depois, nós voltamos para casa e encontramos o padre.”

O rosto dela estava transfigurado ao falar. Era como se tivesse visto uma Visão Divina. Ela falava calmamente, sem nervosismo. Oliver a fitou por um momento; depois, se reclinou para a frente e a beijou gentilmente.

“Sim, minha querida; é verdade. Mas eu quero ouvir de novo e de novo. Diga-me o que você viu.”

“Eu vi o Filho do Homem, “ ela disse. “Oh! Não há nenhuma outra frase melhor. O Salvador do mundo, como fala aquele jornal. Eu O conheci dentro do meu coração, assim que O vi—como todos nós vimos—quando Ele ficou lá segurando no pedestal. Foi como uma glória ao redor da sua cabeça. Eu entendo tudo agora. É Ele a quem estávamos esperando por tanto tempo; e Ele chegou, trazendo a Paz e a Boa Vontade em Suas mãos. Quando Ele falava, eu entendi novamente. Sua voz era como—o som do mar—simples assim—tão forte como ele.—Você não ouviu assim?”

Oliver acenou com a cabeça.

“Eu posso confiar Nele até o fim,” continuou a garota calmamente. “Eu não sei onde Ele está agora, nem quando Ele voltará, nem o que Ele fará. Eu suponho que há muito ainda para Ele fazer, antes que Ele seja plenamente conhecido—leis, reformas—é com isso que ele vai lidar, meu bem. E o resto de nós deve esperar, e amar, e ficar satisfeitos.”


Oliver novamente levantou sua face e olhou para ela.
“Mabel, minha querida—“

“Oh! Eu entendi isso mesmo na noite passada,” ela disse, “mas eu não sabia que sabia até que acordei hoje e relembrei. Eu sonhei com Ele a noite toda..Oliver, onde Ele está?”

Ele balançou a cabeça negativamente.

“Sim, eu sei onde Ele está, mas estou sob juramento---“

Ela concordou rapidamente e se levantou.

“Sim. Eu não devia ter perguntado isso. Bem, estamos satisfeitos em esperar.”

Houve silêncio por alguns momentos. Oliver interrompeu.

"Meu bem, o que você quer dizer quando você diz que Ele ainda não é conhecido?"

"Eu quis dizer isso mesmo," ela disse. "A maioria só conhece o que Ele tem feito—não o que Ele é; mas isso, também, virá com o tempo."

"E enquanto isso---"

"Enquanto isso, você deve trabalhar; o resto virá. Oh! Oliver, seja forte e fiel."

Ela o beijou rapidamente e saiu.

* * * * *

Oliver continuou sentado imóvel, fitando, como de hábito, janela afora. A esta hora ontem, ele estava deixando Paris, sabendo do acontecimento—pois os delegados haviam chegado uma hora antes—mas ainda não conhecia o Homem. Agora, ele conhecia o Homem também—pelo menos ele O tinha visto, ouvido e ficado encantado com o brilho da Sua personalidade. Ele conseguia explicar isso para si não mais do que poderia qualquer outra pessoa—talvez menos se fosse a Mabel. Os outros tinham ficado como os demais: assombrados e conquistados e, ao mesmo tempo,instigados no íntimo das suas almas. Eles tinham se encaminhado-- Snowford, Cartwright, Pemberton, e os demais para os degraus do Palácio de Paul, seguindo aquele estranha figura. Ele tiveram a intenção de dizer algo, mas ficaram emudecidos ao verem todos aqueles rostos do público, os gritos e o silêncio, e sentiram aquela onda de magnetismo que apareceu como se fosse algo físico, quando o volor levantou e fez aquele voo indescritível.
Uma vez mais ele O tinha visto, enquanto ele e Mabel estavam juntos no convés do barco elétrico que os levaria para o Sul. A nave branca havia passado por cima, suave e firme, das cabeças de toda aquela multidão, que O considerava, se alguém tivesse o direito a aquele título, o Salvador do Mundo. Depois, eles retornaram para casa e encontraram o padre.

Isso, também, tinha sido um choque para ele; à primeira vista, parecia que aquele padre era o próprio homem que tinha ascendido ao púlpito duas horas atrás. Era uma semelhança extraordinária—o mesmo rosto jovem e os cabelos brancos. Mabel, é claro, não havia percebido isso; pois ela havia visto Felsenburgh apenas de uma longa distância. E quanto a sua mãe—foi muito terrível; se não fosse por Mabel teria ocorrência violência naquela noite. Como ela havia sido serena e razoável! E, quanto a sua mãe—ele deve deixá-la sozinha por enquanto. Eventualmente, talvez, algo deve ser feito. O futuro!  Era o que o preocupava—o futuro, e  o poder avassalador da personalidade sob cujo domínio ele havia caído naquela noite. Tudo o mais parecia insignificante agora—até mesmo a deserção de sua mãe, sua doença—tudo uma pálida sombra ante o novo alvorecer de um sol desconhecido. E em uma hora, ele iria saber mais; ele fora convocado para Westminster para um encontro de toda a Câmara; as propostas para Felsenburgh deveriam ser formuladas; a intenção era oferecer a ele uma posição importante.

Sim, como Mabel havia dito; era isto agora o trabalho deles—levar a efeito o novo princípio que havia se encarnado neste jovem americano de cabelos grisalhos—o princípio da Irmandade Universal. Haveria muito trabalho; todas as relações exteriores teriam que ser reajustadas—comércio, política, sistemas de governo—tudo precisava de renovação.
A Europa já se encontrava organizada internamente sob uma base de proteção mútua: esta base agora desaparecera. Não havia mais qualquer proteção, porque não havia mais ameaças. Muito trabalho, também, esperava  ter o Governo em outras direções. Deveria ser preparado um documento, contendo um relatório completo dos fatos ocorridos no Oriente, junto com o texto do Tratado que havia sido posto diante deles em Paris, assinado pelo Imperador do Oriente, os reis feudais, a República Turca e também assinado pelos plenipotenciários americanos…
Finalmente, mesmo a política interna precisava de reformas; os atritos entre centristas e extremistas deveriam cessar imediatamente—deveria haver apenas um partido, e à disposição do Profeta… Ele começou a ficar desconcertado ao encarar estas perspectivas e percebia como havia um outro plano no mundo, como todo o status-quo do mundo ocidental requeria mudanças. Era mesmo uma revolução, um cataclisma mais forte que até mesmo uma própria invasão; mas era a conversão da escuridão para a luz, do caos para a ordem.

Ele inspirou profundamente e continuou a ponderar.

* * * * *

Mabel veio até ele meia hora depois, pois ele jantava mais cedo para poder ir a Whitehall.

"Mamãe está mais tranquila," ela disse. "Devemos ter paciência, Oliver. Você já se decidiu se o padre poderá vir de novo?"

Ele balançou sua cabeça negativamente.

"Não consigo pensar em nada," ele disse, "a não ser o que eu tenho que fazer. Você decide, meu bem; deixo isso em suas mãos.”

Ela concordou.

"Vou conversar com ela depois. Neste momento, ela vai entender muito pouco do que aconteceu...A que horas você estará de volta?"

"Não esta noite, provavelmente. Nós vamos discutir a noite toda."

"Está bem, querido. E o que eu devo dizer ao Sr. Phillips?"

"Vou telefonar pela manhã.... Mabel, você se lembra do que eu lhe disse sobre o padre?"

"Sua semelhança com o outro?"

"Sim. O que você acha disso?"

Ela sorriu.

"Não acho nada. Por que eles devam ser parecidos?"

Ele pegou um figo do prato, o comeu e levantou-se.

"Achei apenas muito curioso," ele disse. "Bem, boa noite, querida."



III

"Ah, mãe," disse Mabel, ajoelhando-se ao lado da cama; "não consegue entender o que tem acontecido?"

Ela tinha tentado desesperadamente contar para a velha senhora sobre a mudanças extraordinárias que ocorriam no mundo— mas sem sucesso. Parecia que algo mais era necessário; e seria uma pena se a senhora permanecesse na escuridão, inconsciente do que tinha acontecido. Era como se uma cristã estivesse ajoelhada no leito de morte de um judeu na segunda-feira de Páscoa. Mas a velha senhora continuava na cama, assustada, mas irresoluta.

“Mãe,” disse a moça, “ deixe-me te dizer novamente. A senhora entende que tudo que Jesus prometeu tem se realizado, embora de uma outra forma? O reino de Deus está começando; mas nós sabemos agora quem é Deus. A senhora disse agora pouco que queria o Perdão dos Pecados; bem, você o tem; todos nós o temos, porque não há tal coisa como o pecado. Há somente o Crime. E depois a Comunhão. A senhora costumava acreditar que isto a fazia  parte de Deus; bem, todos somos partes de Deus, porque todos somos seres humanos. Não vê que o Cristianismo é apenas um modo de dizer tudo isso? Eu ouso dizer que era o único caminho, por um tempo; mas isto está tudo acabado agora. Oh! E como está muito melhor! É verdadeiro—verdadeiro. A senhora pode ver que é verdadeiro!”

Ela pausou por um momento, forçando seu olhar para aquele rosto piedoso, as bochechas rosadas enrugadas, as mãos entrelaçadas sobre a coberta.

“Veja como o Cristianismo falhou—como ele dividiu as pessoas; pense em todas as crueldades— a Inquisição, as Guerras Religiosas; as separações de marido e mulher, pais e crianças—a desobediência ao Estado, as traições. Oh! Não pode acreditar que isto estava certo. Que espécie de Deus era isso! E depois o Inferno; como a senhora poderia ter acreditado nisso?...Oh! mãe, não acredite nestas coisas medonhas…
Não entende que Deus desapareceu—que Ele nunca existiu na verdade—que tudo foi um terrível pesadelo; e que agora finalmente todos sabemos a verdade.. Mãe! Pense em tudo que aconteceu na noite passada—como Ele chegou—o Homem com que a senhora estava tão assustada. Eu lhe disse como Ele se parecia—tão sereno e forte—como todos estavam em silêncio—da—extraordinária atmosfera, e como seis milhões de pessoas O viram.E pense no que Ele tem feito—como ele reparou todas as feridas—como o mundo todo está em paz finalmente—e sobre o que irá acontecer.Oh! Mãe, deixe de lado estas mentiras velhas e horríveis;desista delas; tenha coragem.”

"O padre, o padre!"  gemeu a velha senhora afinal.

"Oh! não, não, não—o padre não; ele não pode fazer nada. Ele sabe que é tudo mentira, também!”

"O padre, o padre!"  gemeu ela novamente. "Ele pode lhe dizer; ele sabe a resposta."

O rosto contorceu-se com o esforço e seus velhos dedos mexiam desajeitadamente o terço. Mabel ficou assustada de repente, erguendo-se.

"Oh! mãe!" Ela inclinou-se e a beijou. "Acalme-se! Não vou dizer mais nada por enquanto. Mas pense sobre isso com calma. Não fique preocupada com nada; está tudo perfeitamente bem."

Permaneceu ali por um instante, ainda olhando para o leito com simpatia e sentimento. Não! Agora não adiantava; ela devia esperar até o dia seguinte.
"Eu venho te ver depois,” ela disse, “depois que tiver jantado. Mãe! Não me olhe assim! Me dê um beijo!"

Era impressionante, ela disse para si naquela noite, como alguém podia ser tão cego. E que confissão de fraqueza, também, chamar pelo padre! Era ridículo, absurdo! Ela própria estava repleta de uma paz extraordinária. Até mesmo a morte agora não parecia mais terrível, por não era a morte engolida na vitória? Ele contrastava o individualismo egoísta do Cristão, que tinha medo e se encolhia diante da morte, ou, no máximo, pensava que era somente uma porta para a vida eterna, com o livre altruísmo do Novo Crente que pedia não mais que aquele Homem devesse viver e prosperar, que o Espirito do Mundo devesse triunfar e revelá-Lo, enquanto ele, o indivíduo, estaria satisfeito em se regozijar daquela força de que ele usava para sua vida. Neste momento, ela poderia ter sofrido qualquer coisa, encarada a morte com alegria—ela até mesmo contemplava a velha senhora andar acima com piedade—pois não era piedoso que a morte não trouxesse ela para a realidade?

Ela estava quieta em um ataque de deslumbramento; era como se um grande manto se desenrolasse, mostrando uma doce e eterna paisagem—um terra de paz não mais sombria, onde o leão se deitava ao lado do carneiro e o leopardo com  a criança. Não haveria mais guerras: aquele espectro sangrento estava morto, e com ele, o ninho do mal que vivia em sua sombra—superstição, conflito, terror e irrealidade. Os ídolos foram esmagados, os ratos fugiram; Jeová caiu; o sonhador da Galileia estava em seu túmulo; o domínio dos padres acabara. E no lugar deles, havia um figura estranha e serena de grande poder e ternura.. Ele a quem ela tinha visto—o Filho do Homem, o Salvador do Mundo, como ela O tinha chamado—Ele, que tinha estes títulos, não era mais uma figura monstruosa, meio Deus e meio homem, reinvindicando ambas as naturezas e possuindo nenhuma; aquele que foi tentado sem uma tentação, e aquele que conquistou sem mérito, como seus seguidores diziam. Aqui, em vez disso, havia um a quem ela poderia seguir, um deus mesmo e um homem também—um deus porque humano e um homem porque tão divino.

Ela não disse mais nada naquela noite. Ela olhou para dentro do quarto por alguns minutos e viu que a velha senhora estava adormecida. Sua mão ainda repousava sobre a coberta, e ainda por entre os dedos estava enrolado aquele tola corrente de contas. Mabel passou devagar pelo quebra-luz, tentou tirar o terço das mãos dela, mas elas estavam por demais presas a ele e um murmúrio saiu de seus lábio semi abertos.Ah, que pena tudo aquilo, pensou a moça, o quão sem esperança esta alma deve cair na escuridão, não querendo se render e desapegar da vida porque a própria vida pedia isso!

A seguir, ela foi para seu próprio quarto.

* * * * *

Os relógio tocavam as três horas, e a madrugada começava a aparecer, quando ela acordou e viu à sua cama a mulher que estava cuidando da velha senhora.

"Venha rápido, senhora; a Sra. Brand está morrendo."



IV

Oliver estava com elas pelas seis da manhã; ele veio direto para o quarto de sua mãe, para ver que tudo estava acabado.

O quarto já estava com a luz da manhã e o ar fresco, com o barulho dos pássaros no jardim. Sua esposa se ajoelhava ao lado da cama, ainda segurando as mãos enrugadas da velha senhora, seu rosto enterrado nos braços. A face da sua mãe estava mais serena do que ela já tinha visto antes, as linhas do rosto mostravam as pequenas sombras  de uma máscara de alabastro; seus lábios postos com um sorriso. Ele fitou por um momento, esperando até que a forte pressão na sua garganta terminasse. A seguir, colocou sua mão no ombro da sua esposa.

"Quando?" ele disse.

Mabel elevou seu rosto.

"Oh! Oliver," ela murmurou. "Foi há uma hora ... Olhe para isso."

Ela abriu as mãos da falecida, mostrando o rosário ainda ali torcido; tinha sido apertado em sua última luta, e uma conta marrom jazia entre os dedos.

"Eu fiz o que podia," soluçou Mabel. "Não fui dura com ela. Mas ela não queria ouvir. Ela continuava a clamar pelo padre enquanto podia falar."

"Meu bem ... " disse ele. A seguir, ele, também, se ajoelhou ao lado da esposa, se inclinou e beijou o terço, enquanto lágrimas corriam dos seus olhos

"Sim, sim," ele disse. "Deixe ela em paz. Eu não o tiraria dela por nada neste mundo: era o brinquedo dela, não era?"

A moça o fitou, assombrada.

"Podemos ser generosos, também," continuou ele. "Nós temos o mundo agora finalmente. E ela—ela não perdeu nada; foi tarde demais."

"Eu fiz o que pude."

"Sim, meu bem, e você estava certa. Mas ela era muito velha; ela não conseguia entender."

Ele pausou.

"Eutanásia?" suspirou ele, com um pouco de delicadeza.

Ela concordou.

"Sim," ela disse; "logo que a última agonia começou. Ela resistiu, mas eu sabia que ela desejava.."

Eles conversaram juntos por uma hora no jardim, antes de Oliver ir para sua sala; e daí começou a contar para ela o que havia acontecido.

"Ele recusou," ele disse. "Nós oferecemos  criar um cargo para Ele; Ele seria chamado de Consultor, mas Ele recusou duas horas atrás. Mas prometeu que estará à nossa disposição…Não, não devo de dizer onde Ele está…Ele vai voltar para a América em breve, nós achamos; mas Ele não vai nos deixar. Traçamos um programa, e será enviado a Ele mais tarde…Sim, foi unanimidade.

"E o programa?"

"Ele diz respeito à Franquia, a Lei dos Pobres e o Comércio. Não posso dizer mais do que isso. Foi Ele quem sugeriu estes pontos. Mas, nós não temos certeza de que O entendemos ainda.

"Mas, meu bem---"

"Sim; é muito extraordinário. Nunca vi tais coisas. Não houve praticamente nenhuma discordância."

"As pessoas entenderam?"

"Acho que sim. Nós temos que nos precaver contra uma reação. Eles dizem que os Católicos estarão em perigo. Teve um artigo nesta manhã do jornal Era. As provas foram enviadas para nós para aprovação. Ele sugere que temos que prover meios para proteger os Católicos."

Mabel sorriu.

"Que estranha ironia," ele disse. "Contudo, eles têm o direito de existir. Se eles têm o direito de participar do governo é outra estória. Isto será passado para nós, eu acho, dentro de uma semana ou duas."

"Diga-me mais sobre Ele."

"Não há nada a dizer realmente; não sabemos de nada, exceto que Ele é a força suprema no mundo. A França está alvoroçada e ofereceu a Ele uma Ditadura comandada por Ele.Isto Ele também recusou. A Alemanha fez a mesma proposta que nós; a Itália , o mesmo que a França, com o título de Tribuno Perpétuo. A América não fez nada ainda e a Espanha está dividida.”

"E o Oriente?"

"O Imperador O agradeceu; não mais que isso."

Mabel inspirou profundamente, de pé olhando para a neblina que se levantava da cidade.Eram assuntos tão vastos que ela não conseguia absorver tudo de uma vez. Mas, para sua imaginação , a Europa continuava com sua agitação do dia a dia no começo da manhã. Ela via, à distância, a França, as cidades da Alemanha, os Alpes, e além deles, os Pirineus, a Espanha banhada pelo sol; e todos estavam ocupados com seus negócios, tentando entender aquele formidável figura, que havia aparecido no mundo. A sóbria Inglaterra, também, estava cheia de zelo. Todos os países desejavam nada mais de que este homem os governassem; e Ele tinha recusado a todos.

“Ele recusou a todos!”, ela repetia ofegante.

"Sim, todos. Achamos que Ele possa estar esperando ter notícias da América. Ele ainda tem escritório por lá, você sabe.”

"Qual a idade dele?"

"Não deve ter mais que trinta e dois, trinta e três. Ele está no comando há alguns meses. Antes, Ele vivia só em Vermont. Depois, se candidatou para o Senado; depois Ele fez alguns discursos, a seguir, Ele foi nomeado delegado, embora ninguém parece ter percebido o Seu poder. E o resto nós já sabemos.”

Ela concordou, medidativamente.

"Nós não sabemos de nada," ela disse. "Nada,nada! Onde Ele aprendeu os idiomas?"

"Supõe-se que ele viajou por muitos anos. Mas, ninguém sabe. Ele não disse nada a este respeito."

Ela virou-se rapidamente para o marido.

"Mas o que tudo isso significa? Qual é o Seu poder? Diga-me, Oliver?"

Ele sorriu, balançando a cabeça negativamente.

"Bem, Markham disse que é devido à sua não corrupção e à sua oratória; mas isto não explica nada.

"É apenas sua personalidade," continuou Oliver, "pelo menos, esse é o rótulo a ser usado. Mas isso, também, é apenas um rótulo."

"Sim, apenas um rótulo. Apenas isso. Todos sentiram o mesmo na Palácio, e nas ruas depois. Você sentiu isso?"

"Claro que senti!" disse ele em voz alta, com os olhos brilhantes. "Ora, eu morreria por Ele!"

* * * * *

Eles voltaram para a casa depois, e não foi até que chegaram à porta que falaram algo sobre a velha senhora morta no andar de cima.

"Eles estão com ela agora," disse Mabel calmamente. "Eu vou conversar com as pessoas."

Ele concordou seriamente.

"Seria melhor que fosse essa tarde," ele disse. "Eu tenho um hora disponível às 14h00. Oh! A propósito, Mabel, você sabe quem levou a mensagem ao padre?"

"Acho que sim."

"Sim, foi o Phillips. Eu o vi na noite passada. Ele não voltará aqui de novo.”

"Ele confessou?"

"Sim, confessou. Ele estava muito agressivo."

Contudo, o rosto de Oliver se acalmou novamente ao acenar com a cabeça positivamente e subir novamente para o quarto da sua mãe.


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Fim do Capítulo 1 do Livro 2
Traduzido por Valdemir Fernandes – Março de 2012
Publicado em :  estudioaberto.blogspot.com.br